O episódio do Jantar do Hotel Central - «Os Maias» de Eça de Queirós

Adaptar um texto é ler e voltar a escrever
Agora, imagina-te capaz de o interpretar representando.
Lança-te no desafio: encena e representa esta adaptação!


Adaptado por Frederica Cascão
Para dramatização do episódio do Jantar do Hotel Central
«Os Maias» de Eça de Queirós
Capítulo VI

Carlos e Craft encontram-se no Hotel Central, antes do jantar, quando apareceu “o nosso poeta”, Tomás de Alencar. Por intermédio de Ega foi apresentado a Carlos.
Pouco tempo depois, a porta abriu-se e Cohen desculpando-se pelo atraso foi apresentado, por Ega, a Carlos.
Deu-se início ao jantar, com a apresentação dos vários pratos e vinho, falava-se do crime da Mouraria, que “parecia a Carlos merecer um estudo, um romance”. Isto levou a que se falasse do Realismo e do Naturalismo, bem como de outros assuntos polémicos. Tudo isto se passava, enquanto os vários pratos da ementa eram servidos.


Craft
(Dirige-se entusiasticamente para junto da mesa do jantar, sentando-se.)

- Vimos agora lá em baixo, uma esplêndida mulher, com uma esplêndida cadelinha grifon, e servida por um esplêndido preto!

Dâmaso Salcede
(Não despegava os olhos de Carlos)

- Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim com eles de Bordéus... Uma gente muito chic que vive em Paris.

Carlos da Maia
(Voltou-se, reparou nele, mostrando-se afável e interessado)

- O senhor Salcede chegou agora de Bordéus?

Dâmaso Salcede
(Banhado num sorriso)

- Vim aqui há quinze dias, no Orenoque. Vim de Paris... Que eu em podendo é lá que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordéus. Isto é, verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas estávamos todos no Hotel de Nantes... Gente muito chic: criado de quarto, governanta inglesa para a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece incrível, uns brasileiros... Que ela na voz não tem sotaque nenhum, fala como nós. Ele sim, ele muito sotaque... Mas elegante também, V. Ex.ª não lhe pareceu?

O criado
(Oferecendo a salva.)
- Vermute?

Dâmaso Salcede
- Sim, uma gotinha para o apetite. V. Ex.ª não toma, Sr. Maia? Pois eu, assim que posso, sou direitinho para Paris! Aquilo é que é terra! Isto aqui é um chiqueiro... Eu, em não indo lá todos os anos, acredite V. Ex.ª, até começo a andar doente. Aquele boulevarzinho, hein!... Ai, eu gozo aquilo!... E sei gozar, sei gozar, que eu conheço aquilo a palmo... Tenho até um tio em Paris.

João da Ega
(Aproximando-se)

- E que tio! Íntimo de Gambeta, governa a França... O tio do Dâmaso governa a França, menino!

Dâmaso Salcede
(Vermelho de gozo)

- Ah, lá isso influência tem. Íntimo do Gambeta, tratam-se por tu, até vivem quasi juntos... E não é só com o Gambeta; é com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, enfim!... É tudo quanto ele queira. V. Ex.ª não o conhece? É um homem de barbas brancas... Era irmão de minha mãe, chama-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...


Nesse momento a porta abriu-se de um golpe

João da Ega
(Levantando a voz)
- Saúde ao poeta!

Aparece um indivíduo muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, românticos bigodes grisalhos: já todos calvos na frente, os anéis fofos duma grenha muito seca caíam-lhe inspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre.
Estendeu silenciosamente dois dedos ao Dâmaso abrindo os braços lentos para Craft numa voz arrastada, cavernosa, ateatrada.

Tomás de Alencar
- Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? Dá-me cá esses ossos honrados, honrado inglês!

João da Ega
- Não sei se são relações. Carlos da Maia... Tomás de Alencar, o nosso poeta...

Tomás de Alencar
(Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mão em silêncio – e sensibilizado, mais cavernoso)

- V. Ex.ª, já que as etiquetas sociais querem que eu lhe dê excelência, mal sabe a quem apertou agora a mão...

Carlos da Maia
(Surpreendido)

- Eu conheço muito de nome...

Tomás de Alencar
(Com o lábio tremulo)

- Ao camarada, ao insuperável, ao íntimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro!

João da Ega
- Então, que diabo, abracem-se! Abracem-se, com um berro, segundo as regras...

(Tomás de Alencar tem Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mãos, sacudindo-lhas, com uma ternura ruidosa)

Tomás de Alencar
- E deixemo-nos já de excelências! que eu vi-te nascer, meu rapaz! Trouxe-te muito ao colo! Sujaste-me muita calça! Co’os diabos, dá cá outro abraço!

Craft olhava admirado. Dâmaso parecia impressionado; Ega apresentou um copo de vermute ao poeta.

João da Ega
- Que grande cena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoção...

(Alencar esgotou-o dum trago. Foi encher outro cálice de vermute, e com ele na mão, plantado diante de Carlos, num tom patético)

Tomás de Alencar
(Enfatizando o discurso)

- A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma dessa velha literatura, hoje tão desprezada... Lembro-me até que era um volume das Éclogas do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza, esse rouxinol tão português, hoje, está claro, metido a um canto, desde que para aí apareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilinios em ismo... Nesse momento passaste, disseram-me quem eras, e caiu-me o livro da mão... Fiquei ali uma hora, acredita, a pensar, a rever o passado...

Ega, impaciente, olhava o relógio. Dâmaso continuava a admirar Carlos, Craft bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relógio na mão. A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo a sua demora - enquanto Ega, que se precipitara para ele, lhe ajudava a despir a sobrecasaca.
Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, sorria, descalçando as luvas.
Ega colocara-o preciosamente à mesa, à sua direita e os criados serviram as ostras.

João da Ega
- Ouviram falar do crime da Mouraria, do drama fadista que está a impressionar
Lisboa?
Cohen
(Sorrindo e provando o Bucelas)
- Uma rapariga com o ventre rasgado à navalha por uma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viela em sangue… Uma sarrabulhada! …

Dâmaso Salcede
(Dando detalhes)

Muito bonita. Umas mãos de duquesa... E como aquilo cantava o fado! O pior era que mesmo no tempo do visconde, quando ela era chic... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdeu a amizade … respeitava-a, mesmo depois de casado ía vê-la, e tinha-lhe prometido que se ela quisesse deixar o fado lhe punha uma confeitaria para os lados da Sé. Mas ela não queria. Gostava daquilo, do Bairro Alto, dos cafés de lepes, dos chulos...

Carlos da Maia
(Interessado)

- Esse mundo de fadistas, de faias, merece um estudo, um romance... Como os de Zola e outros romances Realistas…

 Tomás de Alencar
(Em tom de súplica, limpando os bigodes dos pingos de sopa)

- À hora asseada do jantar, não! Não se discute essa literatura latrinária. Aqui todos são homens de asseio, de sala, hein? Então, que não se mencione o excremento! Rapaz, não se mencione o excremento!

Craft
- Também não admito o Naturalismo, a realidade feia das coisas e da sociedade estatelada nua num livro? A arte é uma idealização!

(Ega horrorizado aperta as mãos na cabeça)

Carlos da Maia
 (Do outro lado)

 - O mais intolerável no Realismo são os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida duma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mil e de Darwin, a propósito duma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

João da Ega
(Atacado, entre dois fogos, trovejou)
 - Justamente!... O fraco do Realismo está em ser ainda pouco científico, inventar enredos, criar dramas, abandonar-se à fantasia literária! A forma pura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco dum tipo, dum vício, duma paixão, tal qual como se se tratasse dum caso patológico, sem pitoresco e sem estilo!...
Carlos da Maia

- Isso é absurdo, os caracteres só se podem manifestar pela acção...

Craft

- E a obra de arte vive apenas pela forma...


Tomás de Alencar
(Interrompe-os)

 - Não são necessárias tantas filosofias. Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se deste modo: mão no nariz! Eu quando vejo um desses livros, enfrasco-me logo em água de colónia. Não discutamos o excremento.

O criado
(Adiantando a travessa)
- Sole Normande?

Ega ia fulminá-lo. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controvérsias de literaturas, calou-se.

João da Ega
(Em tom mais cínico)

- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz? Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...

Cohen
(Colocou uma pitada de sal à beira do prato, com tom de autoridade)

- O empréstimo tem de se realizar absolutamente. Os emprestamos em Portugal constituem hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar...

Carlos da Maia

- O país vai alegremente e lindamente para a bancarrota!

Cohen
(Sorrindo)

- Num golpezinho muito seguro e muito a direito! Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da Fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...

 João da Ega
(Mostrando-se impressionado)

- Olha que brincadeira, hein!

Todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.

Cohen
- A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela… será mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país...

João da Ega
(Gritou sofregamente)

- Simplesmente isto: é preciso manter uma agitação revolucionária constante…À bancarrota segue-se uma revolução, evidentemente…  (A voz do Ega sibila)
E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, dessa colecção grotesca de bestas...

Cohen
(Pousa a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso.)

- Mas também homens de grande valor! Há talento, reconhece-lo, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, há talento, há saber. Você também é dos tais...


João da Ega
(Em tom mais calmo)

- Portugal não necessita reformas, Cohen… Portugal o que precisa é a invasão espanhola!

Alencar indignou-se, fazendo gestos de contestação e abanando a cabeça.


Cohen
(Com um sorriso indulgente de homem superior, mostrava os bonitos dentes)

- Isso é um dos paradoxos do nosso Ega!

O Criado
(Apresentando-lhe a travessa. )

- Poulet aux champignons…

João da Ega
(Gritou em  tom de brincadeira)

- O Craft e eu organizamos uma guerrilha! Às ordens, meu coronel! …O Alencar é encarregado de ir despertar pela província o patriotismo, com cantos e com odes!

Tomás de Alencar
(Pousando o cálice, teve um movimento de leão que sacode a juba)

- Isto é uma velha carcaça, meu rapaz, mas não está só para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par de galegos... Caramba, rapazes, só a ideia dessas coisas me põe o coração negro! E como vocês podem falar nisso, a rir, quando se trata do país, desta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de acordo, mas, caramba! …é a única que temos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que rebentamos... Irra, falemos de outra coisa, falemos de mulheres!

Fez-se silêncio

 Dâmaso Salcede
(Com um grito espontâneo e genuíno do brio português)

- A solução é: Raspar-se, pirar-se!... Meninos, ao primeiro soldado espanhol que apareça à fronteira, o país em massa foge como uma lebre! Vai ser uma debandada única na história!

Tomás de Alencar
(Gritou indignado)
- Abaixo o traidor!


Carlos da Maia
(Muito sério)

- Não senhor... Ninguém há de fugir, e há de se morrer bem.

 João da Ega
(Rugindo)

- Para quem estão vocês a fazer essa pose heróica? Ignoram que esta raça perdeu o músculo, o carácter, e é a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...

Craft
- Isso são os lisboetas…


 João da Ega
(Furioso)

- Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...
- A mais miserável raça da Europa!  (Continuava a berrar.)

Mas emudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O Cohen ia falar.

Cohen

-  O futuro pertence a Deus!

Dâmaso Salcede
(Orgulhoso)

- Este Cohen! Que finamente observado!...Que traço adorável! Hein, Craft?
Hein, Carlos? Delicioso!

E nesse momento os criados serviam um prato de ervilhas num molho branco.

O Criado
(Murmurando)
- Petits Pois à la Cohen.

Todos
(Admirados)

- À la Cohen?

Cada um verificou o seu menu mais atentamente.

Dâmaso Salcede
(Declarando entusiasmado)

- Isto é «chic a valer!»

A propósito de poesia moderna, de Simão Craveiro, do seu poema a Morte de Satanás, pegaram-se outra vez numa discussão acesa.

 João da Ega
(Citando com ironia)

- Mas ainda mais «chic» são as estrofes do episódio da Morte, quando o grande esqueleto simbólico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocote, arrastando sedas rumorosas, ora oiçam:
 «E entre duas costelas, no decote,»
«Tinha um bouquet de rosas!»

Tomás de Alencar
(Com desdém)

- Detesto esse Craveiro, o homem da Ideia nova, o paladino do Realismo… (enfatizando) … só nessa estrofe há dois erros de gramática, um verso errado e uma imagem roubada a Beaudelaire!

João da Ega
(Em tom provocador)

- Eu bem sei por que tu falas, Alencar… (rindo) E o motivo não é nobre. É por causa do epigrama que ele te fez… (Citando)
 O Alencar de Alenquer,
Aceso com a primavera...

João da Ega
(Continuou voltando-se para os outros)
- Ah, vocês nunca ouviram isto? … É delicioso, é das melhores coisas do Craveiro… Nunca ouviste, Carlos?... É sublime, sobretudo esta estrofe:

 O Alencar de Alenquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer...
Que quer? Na verde campina
O Alencar de Alenquer
 Quer menina!
 (Continuando a rir) Eu não me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que é a verdadeira crítica de todo esse lirismo pandilha:
 O Alencar de Alenquer
 Quer cacete!

  Tomás de Alencar
(Passando a mão pela testa lívida, com a voz rouca e lenta)

- Olha, João da Ega, deixa-me dizer-te uma coisa, meu rapaz... Todos esses epigramas, esses dichotes lorpas do raquítico e dos que o admiram, passam-me pelos pés como um enxurro de cloaca... O que faço é arregaçar as calças! Arregaço as calças... Mais nada, meu Ega. Arregaço as calças!

(E arregaçou-as realmente, mostrando as ceroulas, num gesto brusco e de delírio.

Tomás de Alencar
(Voltando-se para ele uma face medonha e a tremer.)

- Esborrachava-lhe aquele crânio, sim, esborrachava, João da Ega! Esborrachava-lho assim, olha, assim mesmo! - Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a sala, fazendo tilintar cristais e louças. - Mas não quero, rapazes! Dentro daquele crânio só há excremento, vomito, pus, matéria verde, e se lho esborrachasse, por que lho esborrachava, rapazes, todo o miolo podre saía, empestava a cidade, tínhamos a cólera! Irra! Tínhamos a peste!

Carlos da Maia
(Vendo-o tão excitado, tomou-lhe o braço para o calmar)

- Então, Alencar! Que tolice... Isso vale lá pena!...

João da Ega
(Gritando e de punhos fechados.)

- Não, isso agora é de mais, pulha!

Cohen e Dâmaso, assustados, agarraram-no.

Dâmaso Salcede

- Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no Hotel Central!...  Vá, um shake-hands, Ega, faça isso por mim!... Alencar, vamos, peço-lho eu!

O autor de Elvira deu um passo, o autor das Memórias dum Átomo estendeu a mão: mas o primeiro aperto foi gauche e mole.

Tomás de Alencar
(Abraçando João da Ega generosamente)

- Entre mim e o Ega não deve ficar uma nuvem! Excedi-me... É o meu desgraçado génio…

Abraçaram-se

Todos
(Em uníssono)

- Que venham então as sobremesas!

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