Fernando Pessoa, a Literatura e o Pensamento
Lê este excerto do Livro do Desassossego, Bernardo Soares,Fernando Pessoa e encontra pontos em comum com o artigo da Revista Público «Pode a literatura ser a ciência mais pura?»
A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a
mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço
humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal.
Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os
campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem
descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma
permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não
há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da
casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal,
dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia
bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória
florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os
campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade
do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos,
com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a
história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de
interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é
todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente
metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não
pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com
os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.
s.d.
Livro do Desassossego por
Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de
Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do
Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 520.
"Fase confessional",
segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares,
Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
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